Ana Luiza Isoldi*
Em todos os cursos de capacitação, formação, palestras, workshops, congressos, livros, teses, legislação e Códigos de Ética a que tive acesso para compreender a mediação, me deparei com os intrigantes conceitos da imparcialidade e da neutralidade.
A Lei de Mediação (Lei 13.140/2015, art. 2º, inc. I), o Código de Processo Civil (Lei no. 13.105/2015, art. 166) e a Resolução no. 125/2010, do Conselho Nacional de Justiça falam somente da imparcialidade como princípio norteador a ser observado pelo mediador.
O Código de Ética que norteia os mediadores judiciais, define como imparcialidade o “dever de agir com ausência de favoritismo, preferência ou preconceito, assegurando que valores e conceitos pessoais não interfiram no resultado do trabalho, compreendendo a realidade dos envolvidos no conflito e jamais aceitando qualquer espécie de favor ou presente” (Res. CNJ no. 125/10, art. 1º, inc. IV, anexo III).
Este conceito me parece mesclar as ideias contidas tanto na imparcialidade quanto na neutralidade.
A conclusão inicial que extrai sobre esta diferenciação foi que:
A imparcialidade refere-se a aspectos objetivos, ao tratamento igualitário e simétrico aos mediandos, em termos de procedimento, ou seja, a mesma atenção, zelo e oportunidades devem ser oferecidas a todos os envolvidos.
A neutralidade refere-se aos aspectos subjetivos, aos valores, história e experiências do próprio mediador, que deve se sentir confortável para conduzir o procedimento sem que questões suas sejam trasladadas à mediação de modo a influenciar ou substituir a vontade dos mediandos.
Nessa linha, a imparcialidade é mais fácil de explicar já que a noção de equidistância, isonomia, simetria é familiar em outros contextos, tal como o judicial. Se pedir para um mediando apresentar sua percepção do conflito, dará a mesma oportunidade aos demais. Se resumir sua fala ao final do relato, sintetizará as que se sucederem. Se convidar um mediando para uma reunião privada, oferecerá o mesmo aos outros. E assim sucessivamente. Isto pode ser traduzido como “agir com ausência de favoritismo, preferência ou preconceito”.
A neutralidade me parece um conceito mais complexo.
A doutrina aponta que pode significar não tomar partido; não se envolver afetiva e pessoalmente; ser percebido como neutro; não estabelecer alianças; manter equidistância; não levará para a mesa suas preferências; não contribuirá com opções de solução; não usará seu sistema valorativo.
Em resumo, o mediador deixará em suspenso seu universo substituindo-o durante a mediação pelo universo valorativo e cognitivo dos mediandos (devendo-se ressaltar que pode ser diferente para cada um deles), afastando-se da ideia de pensar sobre o raciocínio binário de quem tem razão para valorizar igualmente os relatos e informações que vão se apresentando.
Será que isto é possível? Será que na prática é assim que acontece?
Muitas vezes me deparei com a angústia de ter um lado meu recomendando seguir com este rigor a neutralidade, impactando o menos possível, levando pouco de mim e mais da técnica, e outro lado meu mostrando que tinha recursos que poderiam ser úteis e que deveriam ser trazidos àquele contexto, para gerar reflexão, clareza.
Me parece ingênuo acreditar que o mediador conseguirá, na condução do procedimento, despir-se de sua história, de sua formação, de sua origem, de suas crenças, de seus valores pessoais, de sua visão de mundo, de seu senso de Justiça, de suas ideologias sociais, políticas, econômicas, religiosas. Não é possível libertá-lo de seu inconsciente, de seus registros, de sua memória, de seus desejos, de sua vivência.
Assim, me contentava com a neutralidade possível, ou seja, aquela exercida para criar um ambiente confortável e de confiança aos participantes, de tal forma que não transcenda questões do mediador para o procedimento nem afete a vontade dos mediandos.
Nesta fase, me apeguei muito à confiança e à legitimidade. Sentia que o crédito dos mediandos na competência, talento, habilidades e qualidades profissionais do mediador, era suficiente para pensar que o trabalho seria bem feito e corresponderia às suas expectativas. Investir em diligência, zelo, prudência, técnica, aperfeiçoamento, paciência, atenção, empatia, serenidade, me dava a sensação de que os mediandos me outorgavam legitimidade, me reconheciam como a pessoa adequada para intervir na situação, com a confiança de estar autorizada a tocar em temas delicados, conduzir o procedimento e buscar o entendimento entre eles.
Mas me deparava com uma dificuldade prática imensa ao tentar explicar estes conceitos aos mediandos e seus advogados.
Minha sensação era de me olhavam pensando… Papai Noel existe, Coelho da Páscoa e Fada do Dente também…
Analisando minha prática retroativamente, acho que nunca me senti compreendida ao conotar a neutralidade.
Evoluindo nos conceitos, tomei contato com o que a doutrina argentina chama de multiparcialidade, que, numa simplicidade incrível, explica que mediador trabalha ao mesmo tempo para todos os mediandos,
Ual, que revolução! É tão mais fácil explicar a função do mediador a partir desta perspectiva!
Com isso, resolvi uma parte desta complexidade que é construir o papel como terceiro que intervém num conflito.
Experimentei por bastante tempo, e comecei a perceber o quanto de mim estava permeando as mediações em que atuava.
Novas reflexões sobre a construção desta “terceiridade”, me levaram a um paradoxo.
Como, ao mesmo tempo, o mediador pode intervir e ser neutro?
Os mediandos iniciam a mediação quando percebem que sozinhos não estão dando conta. E quando chamam um mediador esperam justamente que ele traga uma luz, que intervenha, de um lugar diferenciado, claro, mas que faça a diferença, criando um clima favorável e em prol de todos os mediandos. Este lugar diferenciado consegue ser puramente neutro?
O olhar sistêmico nos indica que a simples presença de um observador produz efeitos.
Quando duas pessoas estão conversando e entra uma terceira no lugar é evidente que algo muda, às vezes param de falar, outras se nota que uma sensação de invasão, outras vezes deixam a primeira relação de lado para acolher a pessoa que chega e incluí-la.
Ou seja, produz efeitos e modifica a interação.
Então, como acreditar que o mediador não produz efeitos, não leva nada de si para a mediação?
A influência do mediador é inevitável.
É impossível participar de alguma interação humana sem impactar, sem outorgar alguma contribuição própria.
É inevitável sentir ressonância nas relações.
O mediador também se relaciona, sente, julga, respira, vive.
A questão é o que fazemos com tudo isto?
Com as constelações, aprendi a dizer “sim”, a aceitar que cumpro minha função com toda a minha história, com todos os meus sistemas, com toda a minha experiência, bagagem, com tudo que já vi, vivi e aprendi, e generosamente coloco à disposição daquelas pessoas, com quem também sigo aprendendo, num ciclo permanente de trocas que a interação humana propicia e nos nutre.
É isto que me movimenta na mediação, que me faz gostar de trabalhar com pessoas em fases delicadas, exalando emoção e buscando clareza para tomar decisões importantes para elas.
A partir do reconhecimento de que o mediador faz parte do sistema e impacta no procedimento, respeitando a vontade das pessoas, me sinto com liberdade de não precisar controlar a neutralidade e poder atuar de modo mais preciso e eficiente, a partir da conexão e do vínculo, que é o que torna a minha escuta efetivamente ativa.
Abandonar a postura passiva da neutralidade com a abstinência proveniente de tudo o que o mediador não é: não é julgador, não é terapeuta, não é advogado… não é humano… foi um passo decisivo na minha formação.
O mediador não é uma pessoa alheia e sem interesse próprio sobre como será resolvido o conflito.
Assumir que gosto de gente e me conecto com os mediandos, e às vezes até cometo o delito de fazer uma pequena aliança temporária num caucus, com consciência de todo este movimento, me faz sentir segura.
Assumir que gosto quando as pessoas fazem acordo ou encontram uma solução a partir do meu trabalho porque acrescenta benefícios à minha reputação, me faz ter a certeza de estar na profissão certa.
Assumir que enquanto ouço os mediandos passam vários julgamentos na minha cabeça, me faz sentir, ainda bem, imperfeita!
Como apagar minha formação em Direito e trabalho como assessora jurídica no tribunal depois de mais de dez anos buscando quem tem razão?
Eu não conheço nenhum mediador que fique frustrado, triste, incomodado quando há acordo, embora tenha plena clareza de que este não é o único ou primordial resultado ou benefício.
E quanto mais me aprofundo no estudo da teoria dos sistemas, mais me convenço de que o mediador faz parte e está dentro do procedimento da mediação, com todos os sentidos, habilidades, recursos e empenho.
Como então exercer esta função?
Criar conexão com as pessoas e encontrar algo de afinidade com todos os mediandos para gostar genuinamente de cada um deles, gerar vínculo, e, assim, equilibrar a atuação do mediador no procedimento.
Reconhecer, legitimar e compreender o lugar de cada um dos mediandos naquele sistema. Todos fazem parte e têm o seu lugar.
Gostar de gente e de suas histórias. Ter curiosidade pela história de cada mediando, adotando uma postura de ignorância para saber mais.
Acreditar na capacidade das pessoas de fazer suas próprias escolhas e serem protagonistas de suas vidas.
Transformar os julgamentos em hipóteses. O julgamento é um mecanismo de defesa. Na mediação, costumo aceitar meus julgamentos e transformá-los em hipóteses, explorando com o mediandos para checar se algo ali faz sentido.
Cuidar da vaidade e não cair na sedução dos mediandos para gerar alianças.
Buscar continuamente autoconhecimento, que facilita a percepção dos emaranhamentos, identificações, transferências, contratransferências, resistências, lealdades que permeiam a relação do mediador com os mediandos, de modo a conseguir se dar conta a tempo de voltar ao prumo.
Compreender o papel do mediador como alguém que apoia as pessoas no caminho do conflito para transitar os processos de mudança, identificar para onde querem ir e planejar como chegar lá, pautadas na colaboração, na autonomia, na voluntariedade, no protagonismo e na capacidade de tomar decisões.
A voluntariedade é a essência da mediação e deve ser respeitada em grau máximo. Os mediandos merecem uma mediação com profundidade.
Ana Luiza Isoldi
* Advogada e mediadora, certificada pelo ICFML – IMI, formada também em dinâmica dos grupos, coaching, constelação e hospedagem. Pratica Ikebana, adora pessoas, poesia e plantas, estuda todos os dias e é mãe da Lorena, com quem aprendeu a brincar. Formada pelo Mackenzie, fez mestrado em Direito do Estado na PUC/SP e em Negociação e Mediação na IUKB (Argentina). Fundou a ALGI, consultoria em gestão de conflitos e mediação, e participa da Mediação Online – MOL como Head de Mediação. Desenvolveu ao longo de sua vida profissional funções institucionais no CONIMA, CBAr, ICFML, OAB, SBDG. Em cursos, workshops e palestras encontra espaço para estar com pessoas e desenvolver sua criatividade.
Texto originalmente publicado na página “Mediando por aí” https://www.mediandoporai.com/single-post/2018/10/12/Mediação-com-profundidade-como-aprendi-a-lidar-com-a-imparcialidade-e-a-neutralidade.