Como podemos usar a comunicação para evitar a escalada do conflito?
Ana Luiza Isoldi e Renata Pasquale Rosa
RESUMO: Trata-se da resenha do filme “trair e coçar é só começar”, buscando extrair do filme os impactos da comunicação na escalada do conflito, bem como as referências em relação ao Direito e à Justiça.
SUMÁRIO: 1. Resumo do filme. 2. Direito, Justiça e Conflito. 3. O Conflito. 4. A Comunicação. 5. Cenas ilustrativas das falhas na comunicação como escalada do conflito. 6. Como podemos usar a comunicação para evitar a escalada do conflito? Referências bibliográficas
1. Resumo do filme
Trair e coçar, é só começar é um filme brasileiro de 2006, de 93minutos, do gênero comédia, dirigido por Moacyr Góes, produzido por Diler Trindade por meio da Fox Brasil, baseado na peça teatral de igual nome escrita por de Marcos Caruso.
O elenco conta com Adriana Esteves como Olímpia, Cássio Gabus Mendescomo Eduardo, Ailton Graça como Nildomar, Bianca Byington como Inês, Mônica Martelli como Lígia, Mário Schoemberger como Cristiano, Márcia Cabrita como Vera, Otávio Müller como Cláudio, Cristina Pereira como Dona Otávia, Thiago Fragoso como Carlos Alberto, Lívia Rossy como Salete Bueno e Fabiana Karla como Zefinha.
Quase todo o filme desenrola-se num condomínio de classe média alta, em que Olímpia trabalha como doméstica na casa de seus patrões, Inês, arquiteta, e Eduardo, médico.
Para comemoração dos 15 anos de casados, Olímpia e Inês preparam um jantar surpresa a Eduardo, que está retornando de um congresso em Brasília. Com o fim de viabilizá-lo, Inês fala para Eduardo que está no sítio e que deu folga para Olímpia. Cristiano e Lígia, amigos dos patrões, são casados e se amam, e também são envolvidos na trama.
Eduardo chega mais cedo do congresso, encontra Olímpia na casa e desenrola-se uma sucessão de mal-entendidos, a partir das suposições e interpretações das falas dos personagens, tendo como principal fonte da confusão Olímpia, que compreende que: Eduardo tem amantes e está traindo a esposa com uma dançarina que conheceu na viagem de volta, a Salete; Inês tem um caso com Cláudio, o síndico do prédio; Lígia seria amante de Rico, proprietário de uma loja de jóias.
Enfim, todos os personagens são envolvidos de em várias falhas de comunicação, que levam a imaginação deles ao extremo, gerando uma bola de neve que culmina em muita confusão que, ao final, é esclarecida, por meio da Olímpia.
É exatamente isto que ocorre em grande parte dos conflitos!
2. Direito, Justiça e Conflito
Quando pensamos em Direito, pensamos em Justiça e em Conflito.
Justiça e Judiciário não são sinônimos.
O Poder Judiciário corresponde ao ente estatal que disponibiliza à população o serviço de aplicação da lei, por meio dos magistrados, com coercibilidade, podendo obrigar alguém a fazer algo que voluntariamente não faria.
Há outros modos de se acessar a Justiça, tais como a negociação, conciliação, mediação, arbitragem, que a legislação brasileira igualmente contempla.
O conflito faz parte da convivência em sociedade e o Direito existe para regular as relações por meio de normas, que poderão ser aplicadas quando não é possível alcançar uma convivência adequada espontaneamente.
Ninguém vive sozinho, por mais que o queira. Há sempre o vizinho da frente, o do lado, o de cima, o de baixo, o síndico, o porteiro, os funcionários, os transeuntes, aquelas pessoas que estão sempre por ali, ao redor, cada um com sua própria história.
A interação é inevitável e necessária, pois a personalidade humana é formada pelas relações sociais, familiares, de trabalho, de vizinhança.
A qualidade de vida, a felicidade de cada um e a percepção de Justiça dependerá do contexto e da qualidade das relações com as outras pessoas.
E as relações são construídas por meio da linguagem.
Falhas de comunicação comumente geram conflitos.
3. O conflito
O conflito surge quando há uma mudança, e a ação ou omissão de uma pessoa interfere na vida de outra, gerando-lhe incômodo.
ENRIQUE FERNANDEZ LONGO entende que existe conflito quando a “tensão entre desejos e possibilidades, que estão competindo com outros desejos e com outras possibilidades”.[1]
RAÚL CALVO SOLER complementa que o conflito provém de “de certos processos de interação, interdependência e incompatibilidade”, no qual a percepção é importante fator.[2]
As diferentes reações ao conflito variam num espectro enorme que engloba evitar, ceder, acomodar, compensar, negociar, competir, colaborar.
O conflito decorre de múltiplos fatores.
Nota-se que muitos conflitos são gerados ou agravados por conta da comunicação.
4. A comunicação
Segundo Joseph O’ Connor, a linguagem “torna nosso mundo interior visível, audível e tangível aos outros”.[3] E complementa: “A linguagem nos dá uma liberdade tremenda, dentro de determinados limites. Não necessariamente limita nossos pensamentos, mas limita a sua expressão para outros, e isso pode levar a mal-entendidos de duas formas”. [4]
O que conseguimos expressar pela linguagem é menos do que pensamos. Ao traduzir em palavras ou gestos, parte da ideia não é transmitida ao interlocutor.
Outro desafio é a atribuição de significados. Por mais que a linguagem utilizada para expressão seja comum, o significado é criado individualmente.
Os significados das experiências nas interações humanas passam por filtros baseados em aspectos sócio-econômico-culturais, e em como cada um lida com a sua própria história, com as informações que recebe, com as percepções que capta e com as emoções que lhes enseja.
As mesmas palavras podem representar coisas diferentes, sofrendo interferência dos compromissos, das relações, dos contextos, da forma como são ditas.
A mensagem contém omissão, generalização e/ou distorção, o que pode acarretar mal-entendidos e falhas na comunicação.
Quanto maior a lacuna, maior a margem para interpretação, para suposição, para fantasias. O que gera conflitos.
Segundo Rafael Echeverría, “As coisas não têm sentido, o acontecer é sempre inocente. O sentido é algo que pertence aos seres humanos, algo que estes conferem”.[5]
Ou seja, a vida tem o sentido que atribuímos a ela por meio da linguagem e das relações. O papel fundamental da linguagem é proporcionar sentido às relações e à vida.
O contexto tem alto impacto na linguagem, conforme a ênfase é posta na figura ou no fundo, levando a diferentes amplitudes.
Tanto a comunicação quanto o conflito podem ser observados sob a ótica intrapessoal (exame interno, dentro de cada um); interpessoal (a minha pessoa em relação a outra); intragrupal (exame interno, dentro de um grupo); intergrupal (um grupo em relação ao outro).
Daí a importância de se levar em consideração a totalidade e suas interdependências para a interpretação da linguagem.
5. Cenas ilustrativas das falhas na comunicação como escalada do conflito
No filme, a escalada do conflito é patente!
Ao final, vários personagens declaram que querem matar ao outro, tudo fruto de falhas sucessivas na comunicação.
Criatiano encontra um cartão no porta luvas do carro de Ligia, onde está escrito: “Ligia, mais um ano juntos, Ricco”, e interpreta que Ligia está tendo um caso com Ricco, e transtornado, vai pedir apoio ao amigo Eduardo. Contudo, outra cena mostra que se tratava de um cartão de comemoração do aniversário da joalheria de propriedade de Rico da qual Ligia era cliente.
Eduardo, ao tirar do bolso equivocadamente um cartão de visitas com o nome da dançarina do ventre Salete Bueno, que ele havia conhecido no avião, foi questionado por Olímpia sobre quem era tal pessoa, e após se irritar com tantas perguntas lhe diz, em tom irônico, que tinha um quilômetro de namoradas. Contudo, Olímpia não compreendeu a entonação de brincadeira e concluiu que o patrão traía a esposa. E acabou passando esta informação posteriormente a Ligia e a Inês. Com isso, mais uma confusão estava feita.
Cláudio guardava uma paixão de juventude, um amor platônico por Inês, que não era correspondido, desde que a conheceu em Botucatu, cidade no interior de São Paulo. Ao reencontrá-la no prédio, sem ser por ela reconhecido, reacendeu a chama. Em meio a uma reunião para tratar de assuntos do condomínio, na piscina do prédio onde era síndico, agarrou Inês a força tentando beijá-la. Inês, com repulsa, tenta se desvencilhar e acaba caindo na piscina. Olímpia escuta os gritos de socorro da patroa e chega bem no momento em que Cláudio e Inês estavam próximos. Inês pede para Olímpia diz que nada aconteceu e pede para não contar o que viu a ninguém. E o mal-entendido está feito! Olímpia pensa que eles têm um romance. Cláudio acha que é correspondido por Inês e lhe manda flores posteriormente, que são flagradas por Eduardo, que conclui que a esposa tem uma amante.
Eduardo e Cristiano, desconfiados de que estão sendo traídos, ficam escondidos para escutar a conversa das mulheres e concluem pelo que conseguem ouvir que suas esposas estão convidando seus amantes para virem jantar. Inês e Ligia, sem saber que os dois estão no apartamento, conversam sobre a interpretação de várias falas e também concluem que estão sendo traídas. Olímpia, cada vez faz mais atrapalhadas na comunicação, omitindo alguns fatos e fantasiando coisas, e ocasiona um caos total.
Ao final da trama, Olímpia prende cada um dos personagens em um cômodo separado, pois estavam enraivecidos com a escalada do conflito, e não sabia o que fazer. Neste momento, todos percebem a confusão comunicacional que teve Olímpia como centro e, após serem soltos por outros personagens que entram em cena, correm para a sala para cobrar dela os prejuízos causados. Olímpia, tristonha e cabisbaixa, diz que agiu daquele modo para ver todos felizes, mas que se não acreditassem iria pagar os prejuízos e ir embora para não causar mais danos, e deixando sua obturação de ouro como pagamento, vai ao quarto fazer as malas, onde é consolada por Nildomar, o zelador que tanto amava, e que se dispôs a dar-lhe todas as suas economias para arcar com a dívida. A princípio, não aceitaram o pedido de desculpas, mas um pouco depois, comovidos com as dificuldades de Olímpia, foram todos parar no pequeno quarto da moça, isentando-a do pagamento dos prejuízos. Olímpia sai do quarto e novamente tranca todos juntos ali, e acaba o filme com uma cena em que ela mostra como havia manipulado todos a partir de sua comunicação carregada de emoção.
6. Como podemos usar a comunicação para evitar a escalada do conflito?
A linguagem tem o poder de construir ou destruir verdades individuais criadas a partir das percepções, e mudar os destinos humanos.
Os profissionais da área jurídica devem ser muito cuidadosos com a comunicação verbal e não verbal, cuidando para que a comunicação seja o mais eficiente possível.
Os advogados, em especial, devem construir estratégias e orientar seus clientes sobre o que, quanto, quando e como transmitir informações.
E cabe aos advogados apoiar o cliente na escolha do método adequado ao seu caso, podendo considerar como critérios o mais eficiente em relação à contenção da escalada do conflito, aos custos, à satisfação com os resultados e aos efeitos produzidos na relação.
Nos mecanismos jurisdicionais, os magistrados e árbitros trabalham sobre interpretação da lei, dos fatos, das provas, e com todo este conjunto extrai uma verdade para o caso concreto externando quem tem razão.
Nos mecanismos autocompositivos, tais como a negociação, conciliação e mediação, a linguagem ganha outra dimensão, trabalhando o terceiro para limpar a comunicação e evitar ou diminuir ruídos, a partir de ferramentas específicas, tais como a empatia, a escuta ativa, o parafraseamento, resumo, checagem, dentre outras, até o silêncio.
Na mediação, especificamente, os mediadores extraem das partes suas percepções e constroem um espaço negocial para encontrar uma solução com a qual todos se sintam confortáveis, proporcionando um contexto para atribuição de significados.
A palavra tem o poder de construir ou destruir verdades, de ajudar ou prejudicar alguém, de praticar ou reparar injustiças, de acobertar ou revelar fatos. E a comunicação precisa ser eficaz para evitar ruídos e permitir uma compreensão que facilite a convivência.
Por fim, tanto no modo escrito quanto oral, verbal e não verbal, quanto mais clara, objetiva, coerente e racional, concomitantemente considerando os elementos emocionais, for a comunicação, mais eficiente se torna para conter a escalada do conflito.
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Referências bibliográficas
ECHEVERRÍA, Rafael. Actos de lenguaje: la escucha. Buenos Aires: Granica: Juan Carlos Sáez Editor, 2008.
LONGO, Enrique Fernández. La negociación inevitable: conmigo y contigo. Buenos Aires: Grupo Abierto Comunicaciones, 2004.
O’CONNOR, Joseph. Manual de programação neurolinguística: PNL: um guia prático para alcançar os resultados que você quer. 5. reimp. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2009.
SOLER, Raúl Calvo. Mapeo de conflitos: técnicas para la exproración de los conflitos. Barcelona: Gedisa, 2014.
Http://www.adorocinema.com/filmes/filme-202334/. Acesso em: 10.03.2018.
Https://pt.wikipedia.org/wiki/Trair_e_Coçar_É_só_Começar_(filme)#Elenco. Acesso em: 10.03.2018.
*Ana Luiza Isoldi organiza capacitação, formação continuada e mentoring para mediadores e gestão de conflitos. Para mais informações consulte: www.algimediacao.com.br
**Ana Luiza Isoldi, sócia da ALGI Mediação. Mediadora certificada ICFML — IMI. Dedica-se à consultoria e treinamentos em gestão de conflitos, especialmente mediação, desde 2004. Graduada em Direito pelo Mackenzie, Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e Mestre em Negociação e Mediação pela IUKB (Argentina). Especialista em Direito Público e em Métodos de Soluções Alternativas de Conflitos Humanos pela Escola Paulista da Magistratura, e em Gestão de Meios de Hospedagem pelo SENAC. Formada em Dinâmica dos Grupo pela Sociedade Brasileira de Dinâmica dos Grupo.
***Renata Pasquale Rosa, conciliadora e mediadora com mais de vinte e quatro anos atuando na advocacia possui sólida experiência nas áreas civil, familiar e criminal. Mestre em — Tutelas de Urgência no Direito de Família — UNIMEP. Pós-Graduada em Dinâmica dos Grupos pela Sociedade Brasileira de Dinâmica de Grupos — SBDG. E Pós-graduação em Gestalt Terapia grupo de formação terapêutica pela DAISEN de Marilia. Presidente e sócia fundadora Rotary Club Internacional Distrito 4330. Fundação do grupo de Adoção de Santa Bárbara D´Oeste. Foi docente de metodologia no curso de Direito na FKB — Fundação Karnig Bazarian em Itapetininga — SP; no Curso de Direito Civil da Faculdade de Direito da UNIMEP. Formação Curso de Inverno para Docente na FGV de São Paulo. Formação em Conciliação e Mediação de acordo com a Resolução 125/2010 de conflitos pelo IASP e pela Algi Mediação e Instituto Mediaras de Buenos Aires. Mediação Escolar — Algi/ APEP com Gabriela Jablkowski. Cadastrada no Conselho Nacional de Justiça CNJ. Conciliadora e Mediadora Judicial no Tribunal de Justiça da Capital.
[1] La negociación inevitable, p.45.
[2] Mapeo de conflitos, p. 41.
[3] Manual de programação neurolinguística, p. 151.
[4] Ob. cit., p. 151–152.
[5] Actos de lenguaje, p. 61.